“A corrupção na minha formulação é o uso indevido de cargos públicos para obter ganhos privados.”[1] Esta simples definição de Rose-Ackerman esconde uma grande complexidade quando estudamos o fenómeno da corrupção nas suas múltiplas dimensões. Numa visão abrangente, trata-se de um fenómeno multifacetado e que tem tanto de definição legal como de valores culturais e sociais, prevalecentes em cada época e sociedade. Não são, por isso, ações ou condutas de fácil definição e muito menos de investigação. São conhecidas as dificuldades, por parte do poder judicial, em investigar e conseguir levar os processos que são investigados até última instância com eficiência e eficácia.
Os indicadores constantes do Eurobarómetro, relativo ao ano 2019, bem como o Global Corruption Barometer (GCB), da Transparency International, de 2021, evidenciam a ineficácia das políticas públicas e a crescente perceção, por parte dos cidadãos, do aumento dos níveis de corrupção em diversos setores da sociedade, em todo o mundo.
No caso de Portugal, no que respeita à melhoria da perceção a respeito da corrupção, o Eurobarómetro refere que: 94% dos portugueses considera a corrupção um problema socialmente endémico (a terceira maior percentagem da União Europeia) e 55% considera que aumentou nos últimos três anos. O GCB confirma estes dados, destacando que 41% dos portugueses considera que os níveis de corrupção aumentaram no último ano, sendo que 60% avaliam a ação do Governo contra a corrupção como negativa.
Também os indicadores da justiça continuam a mostrar uma grande diferença entre a perceção dos portugueses a respeito da corrupção e o seu peso na criminalidade conhecida. O número de processos de inquérito abertos, apesar de algum crescimento, é de escassos milhares, mas, sobretudo, o volume dos que prosseguem para acusação e julgamento é muito baixo: nos últimos anos, menos de 200 por ano. A maioria das denúncias é arquivada e os casos em que há acusação, a gravidade dos crimes é, com frequência, reduzida nas fases seguintes. A esta circunstância acresce a elevada morosidade associada aos processos mais mediáticos, que envolvem pessoas e instituições económica ou politicamente poderosas. O sistema judicial continua, assim, a mostrar dificuldades em responder de forma sistemática, eficiente e eficaz a este tipo de criminalidade.
No plano da prevenção são igualmente identificadas várias lacunas. Ainda que se reconheça a falta de indicadores credíveis sobre a realidade da corrupção, há uma perceção generalizada, quer por partes da população, quer de organismos internacionais, de um frágil desempenho funcional das instituições portuguesas em matéria de prevenção e luta contra corrupção. Veja-se, por exemplo, a Recomendação do Conselho Europeu, relativa ao Programa Nacional de Reformas de Portugal para 2017, que formula um parecer do Conselho sobre o Programa de Estabilidade de Portugal, onde se refere que:
“Portugal está a fazer progressos no que respeita ao reforço da transparência e ao combate à corrupção na administração pública, mas não se vislumbra uma estratégia global. O combate à corrupção parece ser agora uma prioridade real para os serviços do Ministério Público e foram instituídos procedimentos mais eficientes de gestão de processos e recursos. No entanto, não está comprovado que se traduzam em melhorias nas taxas finais de condenação para casos de corrupção de grande visibilidade e na aplicação de penas que se revelem mais dissuasoras. No que respeita à prevenção da corrupção, os planos estabelecidos em cada instituição pública têm sido, de um modo geral, centrados na forma. Não se adaptam completamente a cada organização, nem são complementados por uma monitorização adequada” (COM, 2017, Página 9, Parágrafo 18).[2]
As avaliações do GRECO apontam no mesmo sentido. No relatório publicado em junho de 2019 considera-se que “Portugal procedeu a melhoramentos «menores» no sentido de seguir as recomendações que tinham sido dadas como parcialmente cumpridas no relatório de conformidade efetuado sobre o 4º ciclo (em dezembro de 2017); apenas uma recomendação das quinze foi concretizada de modo satisfatório”[3]. Mais recentemente, no relatório publicado em abril de 2021[4], o GRECO conclui que “Portugal fez apenas pequenos progressos no cumprimento das recomendações consideradas como não implementadas ou parcialmente implementadas” (GRECO, 2021, Página 16, Parágrafo 96).
No lastro da ineficiência de prevenção e de combate ao fenómeno está um modelo de intervenção predominantemente «legislativo» – assente na ideia, muito presente nas reformas da justiça, de que havendo um problema legisla-se e este fica resolvido – e avulso, sem que se vislumbre uma perspetiva holística e uma efetiva articulação entre as dimensões, preventivas e repressivas, e entre as várias medidas. Isso mesmo é reconhecido pelo Governo:
“Apesar das sucessivas intervenções feitas, tanto no plano normativo como nas dimensões de organização e de meios, continua patente a ausência de uma linha de ação coordenada, coerente e consistente que envolva as dimensões preventiva e repressiva e potencie as sinergias resultantes da atividade das diversas instituições, cujo objetivo seja o enfrentamento da corrupção, assegurando igualmente um melhor conhecimento e aproveitamento dos meios disponíveis, assim como a produção de informação quantificada, qualificada e atualizada, que preencha as necessidades de conhecimento e caracterização do fenómeno, salvaguardando também as exigências de reporte a que o país está vinculado. Em suma, continua patente a necessidade de uma ação transformadora capaz de gerar uma sociedade hostil à corrupção e capacitada para a enfrentar com efetividade” (Estratégia Nacional AntiCorrupção 2020-2024, 2021, p. 15).
Com este pano de fundo, o Governo português aprovou, em 18 de março de 2021, a “Estratégia Nacional AntiCorrupção 2020-2024[5], conformando-a como o primeiro documento institucional enquadrador do fenómeno da corrupção, nas suas dimensões preventiva e repressiva, e procurando nela incluir várias vertentes: administrativa e judicial, publica e privada, nacional e internacional. O objetivo afigura-se ambicioso ao procurar:
“(…) envolver e corresponsabilizar instituições do Estado, cidadãos, empresas e instituições da sociedade civil na prevenção pelo conhecimento, pela formação e pela informação, articulada com uma dinâmica repressiva atual, tempestiva e efetiva. Numa perspetiva sistémica, serão convocados para a intervenção pressuposta nesta estratégia o aparelho legislativo, o sistema educativo, o setor privado, a Administração Pública, no seu conjunto, e, de modo particular, os órgãos com funções específicas de prevenção da corrupção, aqui se incluindo as inspeções-gerais e entidades equiparadas e inspeções regionais, assim como, na dimensão mais repressiva, o sistema judiciário.”[6]
Além da mais valia que resulta da adoção de uma visão integrada do problema da corrupção, como vem sendo defendido por instâncias internacionais, o documento enuncia um conjunto de orientações como, por exemplo, melhorar a formação e as práticas institucionais em matéria de transparência e integridade, reforçar a articulação entre instituições públicas e privadas, prevenir e detetar os riscos de corrupção no setor público, produzir e divulgar periodicamente informação fiável sobre o fenómeno da corrupção, entre outras – e de recomendações em torno das dimensões da prevenção e da repressão. No âmbito desta última dimensão, destaca-se a fase de investigação criminal dos fenómenos corruptivos, cujas orientações procuram uma alteração significativa do paradigma vigente. Sublinha-se, pela sua relevância, algumas medidas cujo impacto tem especial potencial de mudança, como a educação para a cidadania de forma abrangente, as alterações ao sistema de prevenção no domínio publico e privado, a criação da Agência para a Prevenção da Corrupção ou as alterações normativas no âmbito do sistema penal, entre outras.
Há, contudo, omissões significativas, que têm sido evidenciadas no debate público, destacando-se a ausência de uma estratégia firme na prevenção em reconhecidas áreas de risco, designadamente no âmbito do poder autárquico ou no financiamento dos partidos políticos e campanhas eleitorais. Faltam, igualmente, outros elementos integrantes de uma verdadeira estratégia, como a definição de medidas concretas em função dos objetivos e devidamente calendarizadas, a não quantificação de metas definidas e a falta de previsão de meios, designadamente de um quadro financeiro de suporte, o que torna qualquer monitorização ou avaliação do cumprimento dos objetivos propostos uma tarefa difusa e complexa.
A elaboração de uma agenda estratégia é um passo crucial para se evitar erros do passado. Mas, o grande desafio é a efetiva implementação das medidas propostas, de forma a desenvolver-se uma verdadeira política pública integrada nesta matéria, com resultados concretos. A ausência de diagnósticos credíveis, quer sobre a realidade do fenómeno, quer sobre a (in)eficiência das respostas legais e organizacionais das últimas décadas, torna a monitorização da execução da Estratégia ainda mais premente. Aliás, a monitorização e avaliação de políticas públicas estruturantes deveria ser uma boa prática endogeneizada pelo poder político.
[1] Tradução livre de “Corruption in my formulation is the misuse of public office for private gain” Rose-Ackerman S. (2008). Corruption. In: Readings in Public Choice and Constitutional Political Economy. Springer, Boston, MA. https://doi.org/10.1007/978-0-387-75870-1_30
[2] Ver: Comissão Europeia. RECOMENDAÇÃO DO CONSELHO relativa ao Programa Nacional de Reformas de Portugal para 2017 e que formula um parecer do Conselho sobre o Programa de Estabilidade de Portugal para 2017 (COM(2017) 521 final). Publicado a 22 de maio de 2017.
[3] Ver em: GRECO. QUATRIÈME CYCLE D’ÉVALUATION. Prévention de la corruption des parlementaires, des juges et des procureurs. Interim compliance report – Portugal. Publicado a 28 de junho de 2019.
Ver em: GRECO. QUARTO CICLO DE AVALIAÇÃO. Prevenção da corrupção em relação a deputados, juízes e procuradores. Segundo relatório intercalar de conformidade – PORTUGAL. Publicado a 12 de abril de 2021.
[5] Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2021, publicado em Diário da República de 6 de abril de 2021.
[6] Idem, página 15.